Sob o Sol da Transilvânia


Cristina Faga


Porque eu o conheço...


Richard enxugou o suor do rosto e levantou os olhos para o céu sem nuvens. Respirou o ar quente e seco, e uma leve tontura o imobilizou por poucos segundos. Depois de muito tempo, estava de volta à praça principal da cidade, onde tantas vezes havia parado na bica, para tomar água após perseguir Marcy no pega-pega. Outras vezes, era ela quem o perseguia.
De onde brota a sensação de plenitude e profunda nostalgia quando se retorna a um lugar que foi tão importante na infância? Que tempo é esse, em que cada momento vivido é um tijolinho em um templo sagrado que contém a alma humana?
Caminhando em direção à delegacia, teve a nítida impressão de que era o mesmo moleque crédulo e contente, com o coração em festa por causa do primeiro amor. Suas recordações validavam a sua existência. Porém, mais do que confirmar a vida, suas lembranças haviam tecido quem ele era naquele exato instante.
Um homem de estatura baixa, corpulento e de suíças ruivas o saudou, assim que parou em frente à delegacia. Usava um capote de verão e transpirava muito, na fronte e sob o ralo bigode.
 Sr. Rowen? De Chicago? Muito prazer, sou Douglas Vain, primeiro investigador. Vamos entrar, o calor a esta hora é impiedoso!
 Ah! Muito prazer Richard deu-lhe a mão e, olhando ao redor, comentou Nasci nestas terras e só há uns dez anos, talvez um pouco mais, é que fui para a América.
 Sim, sim, estamos a par o investigador indicava o caminho com a mão.
Apesar da amabilidade, Richard notou certa impaciência nos gestos. Já dentro da delegacia, o investigador fez as apresentações:
 Este é Ludwig Borgo, o delegado de Passo Borgo. Não é coincidência, sua família fundou esta cidade disse o homem, sorrindo de uma forma um tanto tola.
 Como foi a viagem, Sr. Rowen? – indagou o policial.
 Longa, mas agradável, obrigado.
 Então, o senhor é de Passo Borgo?
 Nasci perto daqui, em Baia Mare, mas cresci em Passo Borgo.
 Como podemos ajudá-lo? O senhor comentou em sua carta que procurava por três rapazes?
O tom amigável, porém cauteloso, confirmou a intuição que tivera, ainda há pouco, de certa ansiedade no ar. Richard entendeu que um resumo seria o que os policiais esperavam de sua explanação. Ao gesto convidativo de Douglas, Richard sentou-se junto à mesa do delegado, numa cadeira à esquerda; o investigador arrastou outra cadeira e se pôs em frente ao visitante.
 Na América, estudei Direito e quis a sorte que eu me aproximasse do filho de um grande advogado. Ele era sócio de um homem poderoso, o maior acionista de certa empresa, Sr. Larry Hatch. E foi para atender a um pedido desse homem que estou de volta às terras de minha infância Richard sorriu timidamente.
Os dois policiais se entreolharam. Aproveitaram a pausa para acomodar-se em suas cadeiras. O delegado colocou os braços para trás, segurando a nuca, e Douglas aproximou a cadeira da mesa, colocando os braços cruzados sobre ela. Richard não se moveu.
 O Sr. Hatch pediu-me esse favor, – continuou o rapaz – justamente por eu ser daqui e conhecer este canto do planeta. Pediu-me que viesse procurar seu filho Maurice e mais dois amigos. Os jovens ouviram falar sobre as altas montanhas, as encostas escarpadas, as corredeiras desta região, e cá vieram com o intuito de praticar escalada e outros esportes. Eu mesmo indiquei rios e montanhas para essa aventura.
 Mas estas terras são tão vastas! O senhor sabe, ao menos, uma localização mais precisa? Para que lado foram? perguntou o delegado.
 No último telegrama que o pai recebeu, Maurice comentou algo sobre um passeio cultural. Consta que tinham tomado conhecimento, em Bistritz, de uma lenda folclórica envolvendo um certo Castelo dos Condenados que, suponho, seja o famoso castelo da família do nobre Lucs Ferdinand. Pelo menos, durante minha infância e adolescência, esse era o único castelo do condado. A propósito, será que o atual Barão Ferdinand precisa do turismo para se manter?
O delegado ergueu-se na cadeira e Douglas foi até a janela. Olhou a rua deserta, empoeirada, e a vegetação castigada pelo Sol. Passou o lenço na fronte e seus olhos anormalmente grandes voltaram-se para Richard.
 Muita coisa mudou desde sua ida para a América disse Douglas, com a voz falhando; depois tossiu.
 Há quanto tempo está longe da Transilvânia? quis saber o delegado.
 Um pouco mais de dez anos. Por quê?
O delegado ajeitou-se na poltrona.
 As terras onde se localiza o castelo do Barão Ferdinand eram disputadas por três condados, isso há mais de vinte anos, quando houve a grande tempestade. Você chegou a ver os resultados da grande tempestade que assolou a Transilvânia?
 Não... tinha viajado seis meses antes. Foi um verdadeiro choque quando meu tio nos escreveu falando no assunto. Soube que muitos condados foram engolidos pelas águas...
 Dos vinte e cinco que haviam, restam somente dezesseis. Localizamo-nos a uma boa altitude; daqui para frente, uns quinze quilômetros ao Norte, há um aclive, suave, mas substancial. Do alto, via-se o caminho que levava a Alba, à esquerda, enquanto à direita o caminho seguia para Arad. No meio, a estrada para o castelo que era disputado pelos dois condados – e também por Passo Borgo. Abismos ladeavam ambas as estradas, com uma diferença de quase trezentos metros, separando Elsia e Mempis, no vale, das terras mais altas. A tempestade varreu do mapa as duas cidades e as águas carregaram consigo montanhas, florestas, plantações. Tudo foi destruído. E o pior foi que toda essa massa de terras, plantas e destroços nivelaram os vales, criando uma planície pantanosa que agora se estende desde Alba até Arad. Há somente um pedaço de terra mais sólido: a estrada que leva até o castelo do nobre Ferdinand. Castelo esse que, depois da tempestade, o povo passou a chamar de Castelo dos Condenados.
 E o que aconteceu com o nobre?
 Sumiu, desapareceu completamente respondeu o investigador, olhando pela janela para a mesma paisagem desértica.
Richard mudou a posição da perna e soltou um pouco o nó da gravata. Houve um silêncio respeitoso, como em homenagem aos mortos na gigantesca catástrofe. O jovem advogado, mais chocado ainda pelos detalhes da destruição, antes mencionada apenas superficialmente pelo tio, calculou o tamanho dos estragos. Teve pena dos mortos. Teve pena do lugar. Lembrou-se de Marcy e seus cabelos dourados. A promessa do eterno amor adolescente... O lenço que usava em torno do pescoço para proteger-se do frio. Tão frágil sua saúde, sempre usando um gorro ou um xale de cashmere. Teria sobrevivido? Mas o delegado interrompeu suas recordações:
 Não foi só o relevo que mudou: o clima também não é mais o mesmo. As estações do ano no resto do país mudam, conforme tem de ser, mas daquele trecho das terras pantanosas até aqui, o Sol sempre é forte e a temperatura nunca fica abaixo de trinta graus. O ano todo. Cientistas cansam de estudar o fenômeno sem, entretanto, encontrarem qualquer causa que seja plausível ou até crível.
Os dois policiais encararam Richard. Pareciam estudar-lhe a reação, sob o impacto de tudo o que tinham falado. O advogado levantou-se, andou de um lado para outro e, aproximando-se da ampla janela, fitou a rua. Viu massas de uma fumaça branca levantar-se do calçamento quente, percebeu o horizonte tremular. Já eram três da tarde, e a sensação de calor lembrava o meio-dia de pleno verão. Virou-se abruptamente e perguntou ao delegado:
 Só não entendo... por que mencionou a disputa de terras na área em que se situa o Castelo do Barão?
 Porque até hoje essa disputa não veio a termo. Antes, os dois condados tinham muito interesse naquelas terras; mas, depois da grande tempestade, o interesse de ambas as partes cessou.
 E quanto a Passo Borgo? Não reclamou as terras?
Com um aceno negativo da cabeça, o delegado completou:
 Juridicamente, somos proibidos de sequer pisar naqueles terrenos. Sinto muito, não poderemos ajudá-lo; se os três rapazes foram até o Castelo e ali se perderam, nós nada poderemos fazer.
 Além disso, é como se aquelas terras tivessem recebido uma maldição interrompeu o investigador São mais do que estéreis... são traiçoeiras, ninguém ousa pisar além dos limites de Passo Borgo disse Douglas, engasgando-se outra vez.
 Bem, mas essa é outra história...
 Dizem que todos que se atreveram a ir ao Castelo jamais retornaram o investigador ergueu a voz, sobrepondo-se às palavras do delegado.
Este concluiu:
 São lendas, mitos, enfim, coisas do imaginário popular. Muito Sol na cabeça acaba amolecendo os miolos. Teve gente que ficou meio lunática depois que o clima daqui mudou. Bem, Sr. Rowen, infelizmente, naquilo que nos concerne, essas informações são tudo o que temos para oferecer no seu caso. Mandaremos informá-lo sobre qualquer outra notícia que, porventura, obtivermos durante sua estadia na cidade.
E o delegado, levantando-se, estendeu a mão em despedida.
Richard cumprimentou-o; olhou para o delegado e depois para Douglas, enquanto os dois policiais se dirigiam para a porta. Dessa vez Richard não teve apenas uma impressão, mas soube que a pressa tinha um propósito. Estava claro que o descendente dos fundadores da cidade e seu comparsa sabiam de mais coisas que não queriam ou não podiam contar.
 Estarei na Estalagem East End, quarto 122, até o próximo domingo.

À noite, depois de um banho quase frio, o calor não abrandou. Vestindo roupas mais leves, após o término de sua refeição, Richard pôs-se a caminhar pelas ruas perto da estalagem. Poucas pessoas circulavam pela cidade. Diante da igreja, em um banco, um casal conversava carinhosamente.
Voltou à sua memória a face dócil de Marcy. O primeiro beijo, as promessas de voltarem a namorar depois que ele se formasse em Medicina. Sorriu com despeito. Na época, pensara ter algum poder de decisão. Contudo, uma vez sob domínio de seu pai, não havia outra saída a não ser fazer exatamente o que ele ordenava. Não se saíra mal na carreira do Direito; era um bom advogado e tinha excelente relacionamento com seus pares, e também com seus chefes. Porém, se não tivesse êxito em encontrar o filho do maior acionista e seus dois amigos irresponsáveis, temia que toda confiança, todo o respeito e consideração que os poderosos tinham por ele pudessem esgotar-se, e veria seu futuro ser arruinado devido a esse infeliz incidente.
Desejava perguntar pelo paradeiro de Marcy e de sua família, mas sentia-se pressionado a pensar apenas em sua missão. Somente depois de ter obtido algum sucesso no caso, estaria livre para revisitar lugares e pessoas da adolescência.
Ao voltar, avistou Douglas encostado à porta da estalagem. Ainda mantinha o capote e o suor na face. Viu-o caminhar ao seu encontro. Continuaram andando pelas ruas. Deixaram passar a estalagem e dobraram a esquina na direção da praça.
 Alguma notícia sobre os rapazes? Richard perguntou deixando transparecer uma ponta de ironia.
 Sei que é tarde, Sr. Rowen, mas eu me conheço, não conseguiria dormir sem lhe contar algumas coisas.
 Que coisas? perguntou Richard, rispidamente.
 O delegado disse para eu não me meter nisso, mas não consigo. Eu vi os três rapazes na trilha que leva até a propriedade do velho Oswald.
Richard ergueu a sobrancelha e o deteve com os braços:
 Sr. Oswald Dying, pai de Marcy Dying?
 Você os conheceu?
 Claro! Eram comerciantes, excelentes agricultores, plantavam frutas... peras, ameixas... maçãs. Tinham lindos pomares.
São eles, sim.
 Continue. Você viu os três a caminho da casa do Sr. Oswald, e depois? perguntou Richard, retomando a caminhada pela praça.
 Bem, é só o que eu sei. Que eles foram vistos na trilha que leva àquelas terras.
 E como isso pode explicar o desaparecimento? Richard quase gritou com o investigador.
 Ah! Sim, talvez você não saiba: é que, hoje, as plantações do velho Oswald ficam no caminho da estrada que leva ao Castelo dos Condenados. Na verdade, os pomares marcam a linha divisória entre Passo Borgo e as terras de ninguém. São poucos passos adiante e pronto... você entra na terra da perdição.
Richard estacou novamente. Encarou a face estúpida do investigador, como que esperando que ele prosseguisse, explicando o que tinha acabado de dizer. Mas o homem o encarou de volta, aguardando a próxima pergunta, que veio, com impaciência:
 O que quer dizer com isso... Terra da perdição?
Com voz trêmula, olhando para os lados, certificando-se de que estavam bem isolados, Douglas narrou, de forma ofegante:
 O delegado não acredita, sabe? Muito embora ele nem se aproxime da propriedade do velho Oswald para perguntar a respeito de nada. Ele diz que não acredita em boatos, e se esconde atrás da lei para não fazer nada, não investigar nada, enfim, cruzar os braços. Aqui entre nós, acredito que é puro medo, mas, enfim...
Em silêncio, os dois atravessaram a rua e o investigador parou diante da bica; bebeu muita água. Depois, passando o lenço na fronte, voltaram a andar pela praça, já completamente vazia.
 O Sr. Borgo diz que tudo isso é folclore, que o povo é supersticioso, crédulo demais, riu-se, tolamente ele diz que o Sol da Transilvânia enlouquece as pessoas...
  Ande, homem, diga logo o que tem a dizer! Richard estacou sob uma árvore.
 Todo o povo daqui sabe, conhece a história. Até os forasteiros são avisados. Só segue para o Castelo quem é cético ou estúpido demais para não ligar aos avisos.
 Que história é essa?
 Talvez você a conheça...
Richard o encarou com o olhar fulminante. O modo de narrar do outro, aos soquinhos, com cem prefácios, o irritava. Cruzou os braços e permaneceu em silêncio. Douglas tossiu e, raspando a garganta, começou:
 Aconteceu num tempo antes da grande tempestade todas as pessoas contam na mesma sequência, tim-tim por tim-tim, sem tirar nem pôr, compreende? Dizem que o Barão Lucs Ferdinand havia feito um pacto com o diabo para viver mais de cem anos...
 Isso é história velha, coisa da minha infância... Richard o interrompeu, decepcionado.
 Espere, eu sei disso. O povo repetia a história porque entrava ano, saía ano, o velho tinha sempre a mesma face desbotada, de dentes arrepiados, o sorriso amarelo, o olhar complacente sob os pequenos óculos de aro invisível. Suas faces flácidas e mãos pegajosas sempre causaram repulsa às pessoas, e ainda por cima, ele andava como se flutuasse no ar. Era um homem mesmo muito excêntrico! Mas aconteceu que uma menina, uma jovenzinha, ficou doente, muito doente, e nenhum dos médicos, neste condado ou nos próximos, soube como tratar a estranha doença. Como último recurso, a mãe e o pai da doente levaram a menina, já quase sem vida, ao Castelo do Barão Ferdinand pedindo, implorando que ele a curasse desse mal. Dizem que o Barão achou a débil menina muito bela, cheia de encantos, e se apaixonou instantaneamente por ela. Ele se propôs a salvá-la em troca de uma promessa dos pais: de que, quando ela completasse a maioridade, eles a entregariam em casamento. Entende o preço? A vida da filha em troca de um casamento com o próprio demônio.
Enquanto Douglas narrava a história, Richard ficou pálido, tomado por um tremor incompreensível. O calor chegou a sufocá-lo e eles tiveram de voltar à fonte em busca de água. Richard bebeu muita água, mas como isso não aliviasse seu mal-estar, enfiou toda a cabeça debaixo da água. Depois de alguns minutos sentiu-se melhor e eles voltaram a caminhar.
 Quem era essa menina? Qual o nome dela? o jovem advogado perguntou, temendo a resposta.
 Ninguém sabe! Alguns dizem que era a filha do Boticário que morava em Elsia; que nunca mais se soube nada a respeito deles, foram engolidos pelas águas da grande tempestade. Outros acreditam que era parte da família do velho Oswald.
Richard sentiu um arrepio gelado cruzar sua espinha. Era isso o que ele não queria ter ouvido. Pensar em sua grande paixão da adolescência, envolvida nos braços de um velho decadente... não, não podia ser! Teve mais ondas de tremores pelo corpo. Porém Douglas, indiferente ao que ia na mente e no corpo do rapaz, continuou:
 Você sabe, pobre do velho Oswald e da filha, todos dizem que, por causa desse boato, eles tiveram de vender a propriedade que possuíam no centro de Passo Borgo e mudar-se para as terras mirradas desse fim de linha, onde já plantavam, o limite com as terras do pântano. E veja que, de todos os boatos, esse é o mais mentiroso.
 Por quê? Richard perguntou impaciente.
 Ora, porque o velho Oswald e sua filha ainda moram lá, plantam suas frutas, e têm um ou outro empregado para a semeadura e colheita – um sujeito raquítico que se faz de capataz, de mordomo, essas funções mais altas. Se ela fosse a noiva do Coisa Ruim, eles viveriam no Castelo! E aquilo lá, depois da grande tempestade, é uma ruína de dar dó. Bem, está dado o recado... Acho que agora vou conseguir dormir. Já sabe, se quiser saber notícias dos três rapazes, o rancho do velho Oswald é sua próxima parada.
O investigador já atravessava a rua, quando Richard pediu para que esperasse.
 Você me guiaria até a propriedade? Será bem recompensado.
Sem hesitar, o investigador fez os arranjos:
 Ao meio-dia, amanhã, duas quadras acima da delegacia. Alugue uma carruagem ou uma caleça.

Quando Richard desceu da caleça que alugara, tirada por dois cavalos, e parada a poucos metros de uma espécie de taverna que o velho Oswald construíra à entrada de suas terras, para servir sucos das frutas que produzia, Richard sentiu o peso do Sol sobre o corpo. Parecia que o círculo solar estava maior, o brilho mais intenso e o calor, simplesmente, insuportável. Sentiu um cheiro fétido acompanhar uma brisa fraca e somente quando fixou a vista no horizonte é que o atingiu o mesmo tremor incompreensível da noite anterior.
Nada havia em seu campo de visão que lembrasse a paisagem gravada na retina de sua infância. Em sua recordação, havia apenas um patamar, largo o bastante para servir como caminho aos condados vizinhos e de cada lado desse largo patamar, abismos que separavam as duas cidades em cada um dos vales. O que contemplava, agora, dava-lhe uma impressão de estranheza que o sufocava. Afrouxou a gravata e gotas de suor correram-lhe pelo pescoço até o peito já encharcado.
Quis falar de seu espanto, mas só conseguiu balbuciar palavras desconexas. Onde antes estavam os abismos, agora havia um imenso pântano silencioso, de ambos os lados, estendendo-se até onde os olhos não tinham mais como alcançar. Do pântano, saía uma névoa pestilenta que fazia, por vezes, sumir o horizonte. E bem à frente, no alto, carregado nos braços da névoa, pairava o Castelo em ruínas.
Teve a sensação de estar dentro de um sonho, mas sonhos retiram suas imagens da realidade, e o ineditismo da paisagem lhe dizia que aquilo era mesmo real. Sentiu que perderia as forças. Voltou seu olhar para a pequena cabana e avistou um rosto familiar.
Douglas, calado, como se ele também estivesse surpreso com aquela paisagem, seguiu Richard, que caminhava lentamente até a taverna. A moça loira, com um lenço no pescoço, estava absorta lendo um livro. Não notou a aproximação dos dois homens. Richard pausou ainda mais os passos, como a se certificar de que era mesmo Marcy atrás do balcão.
A moça o reconheceu de imediato; gritou seu nome quando retirou os olhos do livro e correu até ele, para abraçá-lo. Conteve-se, porém, quando percebeu a palidez em sua face. O advogado fechou os olhos e caiu, desmaiado aos seus pés. Foi levantado por Douglas, que o arrastou para dentro da taverna.
 Água, um copo de água, por favor! pediu o investigador.
 Por que não lhe dá logo o suco de rubínea? É um poderoso vitamínico. Ele estará de pé em dois minutos disse um homem grisalho, meio corcunda, surgindo por trás do balcão.
 Não! disse a moça, contundente água, papai, dê-lhe um copo de água!
Foi um ajudante magro, de barba longa e olhos negros, usando um par de óculos de aros transparentes, que segurou o copo enquanto Richard tentava beber, ainda mais ou menos desacordado. A água lhe escorreu pelo canto dos lábios e Richard tossiu várias vezes, voltando a si. Olhou ao redor e teve a impressão de que havia um estranho dentro de seu próprio corpo. Fitou Douglas e imediatamente lembrou-se de onde estava e por que tinham vindo àquele lugar. Olhou para o ajudante que o encarava com ar complacente, um sorriso que deixava entrever dentes pontiagudos.
Mas, ao deter-se na face preocupada de Marcy, teve a sensação de estar de volta aos seus treze anos, quando a beijara pela primeira vez. Ela estava ali, tão linda e etérea quanto nas tantas vezes que a contemplara, nos dias da adolescência.
 Marcy, você não mudou nada! exclamou, erguendo-se no banco.
 Então você voltou, Richard ela constatou, com um largo sorriso.
 Venha aqui, rapaz, venha tomar um suco de rubínea que ficará novo em folha!
O rapaz caminhou até o balcão e saudou o velho Oswald, que já servia suco em copos, um para ele e outro para o investigador.
 É o senhor mesmo, Sr. Oswald?
 Sem tirar nem pôr! Tome o suco, rapaz o velho insistiu, arrastando um copo para perto do investigador e outro para perto de Richard.
 Papai! gritou a moça. E, chegando por trás do balcão, tirou rapidamente o copo das mãos de Richard e jogou o conteúdo na pia atrás de si Porque eu o conheço, sei que ele prefere água, não é mesmo? E serviu água cristalina em seu copo.
Richard tentou puxar assunto com o velho Oswald, mas o agricultor só falava de sua plantação de maçãs, peras e ameixas, ressaltando as qualidades da nova fruta que passara a cultivar em suas terras, após a grande tempestade. A fruta continha muitas vitaminas, tornava o sangue forte, vermelho e caudaloso, multiplicando-se no organismo; curava qualquer fraqueza! Mostrou-lhe uma frutinha, pouco maior que uma cereja: abriu-a e o suco abundante jorrou pelo balcão. Percebia-se que Marcy estava incomodada com aquela explanação tão sem propósito para o visitante. Ele não era qualquer um, era Richard, seu vizinho, amigo e namorado, a quem ainda devotava afeição.
Enquanto Douglas ouvia, com interesse crescente em experimentar a poderosa fruta, Marcy tomou o braço de Richard e o conduziu para fora da casa. Deram alguns passos e pararam sob uma árvore. O Sol estava a pino, mas o vento soprava com mais força. Trazia ainda um cheiro nauseante e Richard olhou de novo o pântano e a névoa que dele saía, perene, insistente. Ela quis saber:
 Você retornou para ficar?
Ignorando a pergunta, ele se voltou para Marcy, com docilidade. Afastou uma mecha de cabelo que caía em seus olhos e acariciou-lhe a face.
 Você ainda é a mesma menina de quando deixei Passo Borgo. Seu pai também, não mudou nada. E sua mãe?
Marcy sorriu, e comentou que sua juventude se devia à fruta que o pai encontrara na região. Quanto à mãe, morrera no pântano, logo depois da grande tempestade.
 E seu tio Peter, a tia Nancy? ela perguntou suavemente.
 Minha tia morreu há três anos e meu tio veio morar conosco. Não tenho mais família nesta terra. Do passado, só há você.
Após uma pausa, indagou:
 Você voltou por minha causa?
Ele sorriu e a abraçou. Sentiu-lhe o frescor da pele. O mesmo perfume dos cabelos, a mesma fragilidade dos braços em torno do seu pescoço. Afastando-a, disse:
 Tantas vezes quis voltar para buscá-la, mas a vida foi me empurrando para longe de meus objetivos, de um modo tão brusco e tão intenso que não tive tempo para fazer parar aquele moinho. Meu pai me forçou a trocar a Medicina por Direito. Disse que a profissão serviria melhor aos objetivos da família. Nas férias, quando mencionava a ideia de voltar para ver você, ele arranjava um trabalho extra, um estágio, e logo o descanso se acabava. Foi assim, tem sido assim, uma sucessão de coisas a fazer que nunca têm fim. Abandonei meus ideais, deixei de lado a intenção de vir buscar você.
Você me abandonou! ela afirmou, com um sorriso triste. Duas vezes. A primeira quando foi para a América estudar, e a segunda quando lá me esqueceu de vez.
Nunca, nunca foi esse o meu desejo!
 Mas, então, agora... por que você voltou?
 Vim em busca de três rapazes. Um deles, filho do meu patrão, Sr. Larry Hatch; desapareceram após dizerem que iam visitar o Castelo do nobre Lucs Ferdinand. Você teria, por acaso, visto três jovens americanos passarem por aqui?
Ela desviou os olhos amáveis para o chão e, mudando de um sorriso gentil para um rosto sem expressão, respondeu que não estava lembrada de nenhum grupo de rapazes. Richard aproximou-se e a abraçou novamente.
 Há tanta coisa que precisamos conversar, há tanto para ser dito!
 Não há nada para ser dito disse ela, com voz embargada.
 Como não? Na última carta que me enviou, você disse que estava doente, mas não falou do que se tratava. E por que não me escreveu mais?
 Você não me respondeu!
 Claro que respondi.
 Sua resposta nunca chegou às minhas mãos.
Os dois ficaram em silêncio, abraçados, como se o calor de seus corpos pudesse consolar e fazer reatar todos os elos perdidos de uma união que o destino não quisera realizar.
Sem que ele pedisse, ela foi narrando o que acontecera desde que haviam se separado.
 Pouco depois de você ir para a América, caí doente. Disseram que foi resultado da picada de um inseto, talvez, mas ninguém conseguia me curar. Meus pais me levaram a vários condados atrás de unguentos, óleos ou líquidos milagrosos, mas nada, nada fazia ceder a febre que, em alguns momentos, me fazia ficar delirante. Meu pai diz que fiquei muitos dias inconsciente. Sobreveio a grande tempestade, corpos e mais corpos boiaram mortos nestes campos, e eu fiquei alheia a todo o horror que o povo daqui sofreu naqueles dias. Quando voltei a mim, meu pai disse que fora a rubínea, essa fruta que brotou em Passo Borgo, trazida dos céus, que me fez recuperar completamente a saúde. Infelizmente, quando voltei a mim, não encontrei mais minha mãe que, segundo meu pai, entrou em um falso atalho e afundou no pântano. Não há como sair desse charco... já vi tantos cachorros atrevidos invadirem o terreno traiçoeiro e latirem, uivando, pedindo para serem salvos. Nada nem ninguém conseguiria socorrê-los sem que afundasse nas profundezas e desaparecesse junto com eles.
Nesse instante, um grito de Douglas chamou Richard de volta à taverna. O casal veio apressado e o investigador, bastante vermelho e suado, contou o que ouvira do velho Oswald. Disse-lhe que o pai de Marcy e seu ajudante, o Sr. D., serviram o suco de rubínea e muita água aos três rapazes, além de lhes terem dado a exata indicação do patamar – seguro e firme – que ia até o Castelo dos Condenados.
 O senhor viu os três voltarem? Richard perguntou, ansioso.
 Não, não vi, não. Você viu, Sr. D.?
O homem de mãos pegajosas apenas acenou negativamente com a cabeça.
 Você viu, minha filha?
 Não, papai! Mas... mas eles podem ter seguido... pela estrada ao Norte.
 Há uma outra saída, então? Douglas indagou, acabando mais um copo de suco de rubínea.
Minha filha não conhece o lugar, mas posso garantir que não há outra saída. Todo o terreno em volta do Castelo virou pântano. Não se pode dar um passo sem afundar na lama. Mas talvez fosse bom vocês irem até lá. Se estiveram no castelo, devem ter deixado algum tipo de vestígio.
 Então, não há outra coisa a fazer... vamos até o Castelo! concluiu o investigador, pedindo mais um copo de suco de rubínea. Você devia tomar, Ricky, esse suco é muito bom!
 Se quiser, já estou servindo, rapaz... O velho Oswald pegava um copo e já o enchia com o suco.
 Não, papai. Eles têm de ir logo, não é, Richard? Marcy empurrou o ex-namorado para o caminho que seguia para o Castelo e, dando-lhes as indicações sobre o terreno seguro e firme, despediu-se. Conversaremos mais quando voltarem.
 Claro! Richard respondeu, sorrindo para a amiga.

Seguiram com a caleça e pararam a certa distância diante do Castelo em ruínas, que não tinha mais portas ou janelas. A estrutura estava abalada e as paredes curvas pareciam que iriam desabar a qualquer barulho mais forte. Havia muitas pedras, de onde estavam até a porta de entrada, e Richard olhou em volta à procura de terreno firme. Estava parado no meio do lamaçal, eclipsado no meio de uma névoa. Nem mesmo a taverna do velho Oswald podia ser vista daquele ponto. Se ali pisassem em falso, sumiriam sem que ninguém desse por sua falta.
Richard ouviu Douglas rir e, quando voltou os olhos para ver o que acontecia, viu-o afundar-se numa verdadeira lagoa de rubíneas. Elas pareciam brotar do pântano como bolhas do vapor fétido.
 Ei, Ricky, veja só! Estas frutinhas sobem como bolas de sabão! São macias, morninhas, é uma delícia! Venha! Mergulhe nesta lagoa!
O investigador ria como uma criança e jogava seu corpo para trás, para os lados, esmagando as frutas, fazendo jorrar o abundante suco vermelho por todos os lados. Logo à sua volta formou-se uma poça vermelha e manchou suas roupas. Richard suspeitou que a fruta contivesse alguma substância que alterasse o sistema nervoso, e aguardou, olhando com repulsa o investigador agir como um infante.
De súbito, ouviu um zumbido, como um mosquedo voando ao redor de um doce. Deu um passo para trás e caiu, quando viu sair da névoa, bem atrás de Douglas, uma multidão de criaturas esfarrapadas, com olhos esbugalhados e enormes dentes proeminentes, como os dos tubarões; uivavam, guinchavam, sibilavam, riam-se e gritavam num estridente e destoante vozerio.
Eram muitos, eram tantos! Homens e mulheres, crianças e velhos, todos se arrastavam, erguendo seus corpos putrefatos do lamaçal. Aproximaram-se do investigador e começaram a fazer-lhe carícias, a puxá-lo de todos os lados. Douglas ria e chamava Richard para juntar-se a ele. O advogado quis gritar, ordenar-lhe que corresse, fugisse o mais rapidamente possível, mas tudo o que conseguiu fazer foi abrir a boca, aterrorizado. Rastejou, afastando-se. Conseguiu agarrar uma pedra e jogá-la na direção do investigador, numa tentativa de despertá-lo do transe. Mas a pedra só fez atrair a atenção dos mortos vivos, que começavam a devorar as pernas e os braços de Douglas. Ele nada sentia, continuava rindo aparvalhado, como se crianças travessas lhe fizessem companhia numa brincadeira.
Uma das criaturas se parecia com Maurice, o filho do acionista. Não podia ser!
Então todos eles estavam ali, transformados em zumbis – os amigos irresponsáveis, a mãe de Marcy... e quem seriam as outras pessoas? Viajantes que se aventuraram, indo ao Castelo do nobre Lucs Ferdinand? Pessoas que só tiveram a oportunidade de ir, sem jamais voltar? E suas carruagens? Estariam todas atoladas naquele pântano dos infernos?
Richard tentou levantar-se, mas sentiu as pernas presas numa lama pegajosa. Percebeu que tinha se afastado do caminho firme e seguro, resvalando para o charco que sugava qualquer vida que ali se perdesse.
Ouviu, então, um uivo mais forte. Levantou os olhos e, em pânico, viu o corpo desfigurado do velho Oswald arrastar-se na sua direção. O Sr. D. também o seguia e, naquele momento, o advogado não teve dúvida: aquele homem era, evidentemente, o nobre Lucs Ferdinand. Toda a lenda e folclore em torno de sua personagem eram reais. Ele fizera um pacto com o diabo, vendera-se ao Condenado em troca da vida eterna. Dera vida eterna a Marcy, salvando-a da doença; fizera o mesmo ao velho Oswald, tornando-os seus súditos e se fazia de capataz da propriedade para camuflar seus assassinatos. Agora ele possuía uma legião de demônios vorazes, atraindo ao seu covil os inocentes, parvos e imprudentes: serviriam de alimento a uma fome jamais saciada.
O velho Oswald e o Sr. D. começaram a puxá-lo pelas mãos, mas uma voz horrenda, grave e gutural ordenou que os dois o deixassem ali mesmo.
Richard levantou a cabeça e, completamente estarrecido, sem forças, prestes a desmaiar de horror, viu Marcy, com seu lenço em volta do pescoço, cheio de vermes e pus e sangue pisado, carregá-lo para fora do pântano, enquanto dizia:
 Porque eu o conheço...

© Cláudia Cristina Faga, 2013

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